A Natureza Como Eu A Vejo
URBANO | VASCO BARATA | MARGARIDA ANDRADE
Em arte a realidade verdadeiramente possível é a que nós inventamos.
Ana Hatherly
O poder da imaginação poderá ser, talvez, o motor para celebrar a resiliência de 25 anos de uma galeria no meio do Atlântico. A história da arte contemporânea registará, seguramente, o que aqui foi feito e o que ainda se fará. Habituámo-nos a que a Galeria Fonseca Macedo fosse o espaço em que outros Açores são possíveis. Uns Açores onde artistas locais, nacionais e internacionais encontram uma casa e partilham diálogos. Uns Açores em que o público local tem acesso a práticas artísticas contemporâneas de relevância indiscutível. Uns Açores que extravasam a geografia das ilhas e que levam as obras dos seus artistas a outros territórios. Há, por isso, que celebrar e acarinhar este projeto, porque tudo isto é tremendamente bonito, mas também tremendamente frágil.
O que a Galeria Fonseca Macedo fez, continua a fazer e, seguramente, fará por esta região, é sem dúvida política cultural e, talvez, a mais estruturada no campo das artes contemporâneas no que diz respeito a fixar um imaginário simbólico continuado sobre este território e a sua produção artística, integrando-o, sempre que possível, e apesar de todas as vicissitudes, num discurso abrangente e em diálogo permanente com o mundo.
A exposição A Natureza Como Eu A Vejo inicia o programa comemorativo do 25.º aniversário do projeto e reúne obras de três artistas – Urbano, Vasco Barata e Margarida Andrade – que representam gerações muito distintas, o que é, por si só, revelador do trabalho contínuo de renovação e acompanhamento que a Galeria tem feito nestas mais de duas décadas de existência.
Iniciamos o percurso por esta exposição celebratória com A Montanha do Fogo (2024), uma série de obras de Urbano (São Miguel, 1959), que parece prolongar a inquietude do artista perante os mistérios e as teorias da origem do mundo e das espécies. Há muito que Urbano partilha nas suas pinturas um conjunto de experiências pessoais, aquilo que o rodeia, o que vivencia. As suas peças são emaranhados de histórias que, tocadas pelos elementos naturais, nos revelam fragmentos de paisagem, de criação, de vida. Urbano parece relembrar-nos sempre que a simplicidade é complexa, que as suas pinturas são fogo, são água.
Vasco Barata (Lisboa, 1974) apresenta BEGET II (2024), um corpo de trabalho onde o desenho pretende expandir ideias de paisagem. Nestas obras são notórias as influências dos imaginários literários de ficção científica, mas acima de tudo um entendimento muito pessoal e idiossincrático do que estas paisagens poderão vir a ser num futuro não tão distante, em que o humano parece não ter presença e em que o mundo natural parece ter tomado o espaço do mundo construído. Mais do que possíveis cenários de um futuro distópico, são imagens construídas por exercícios cumulativos de spray e tinta-da-china, em que a mão desenha futuros imaginados. Barata parece relembrar-nos quão belo pode ser amar a morte escura.
Margarida Andrade (Ponta Delgada, 1996) continua a sua deambulação pelos espaços naturais, questionando o entendimento generalizado do que é, ou não é, natural; ou se tudo é natural e a dialética natureza-humano apenas pretende dar conta da nossa necessidade em separar estas duas categorias. Na subjetividade artística de Andrade, seres ficcionais, pertencentes a um passado longínquo, também ele ficcional, são olhados a partir de um futuro ainda ele mais longínquo. Esta temporalidade expansiva, onde passado e futuro imaginários se relacionam de forma especulativa, traz-nos a possibilidade de uma compreensão mais enriquecedora sobre o hoje que habitamos. A série de pinturas (Sem título, 2024) que desenvolveu para esta exposição apresenta a natureza que a rodeia, das plantas que carrega em sua casa, às serras da ilha onde vive, mas é sobretudo através de um autorretrato, em que se esconde nas folhas de um salgueiro-branco, que parece dizer-nos que não existe um “fora” da natureza e que também nós, humanos, somos natureza, ainda que o recusemos como ponto de vista ontológico. Andrade parece relembrar-nos que o nosso corpo é também terra e vento.
A Natureza Como Eu A Vejo constrói-se entre a observação de Urbano, a comunhão de Andrade e a prospeção de Barata. Ainda que sejam as obras destes três artistas que enformam o entendimento sobre este tema, bem como a centralidade que ocupa tanto na história da arte como num conjunto de preocupações mais vastas e transversais ao pensamento contemporâneo, fica também evidente, pelo título, que cabe a cada um de nós ver e ser natureza.
João Mourão
Julho de 2024