Celebração e Resiliência
JOÃO MIGUEL RAMOS | MARIA ANA VASCO COSTA | PEDRO CABRITA REIS
Celebração
Há algo de edificante quando, a partir de uma determinada periferia, se constrói um centro simbólico. É esse o caso do lugar único que a Galeria Fonseca Macedo, pela visão de Fátima Mota e António Macedo, foi erigindo nos seus vinte e cinco anos de atividade no plano da divulgação qualitativa da arte contemporânea nos Açores. É também esse o lugar que ocupa um outro exemplo de rigor e persistência protagonizado pela Porta 33, na Madeira, onde o recentemente falecido Maurício Pestana (a quem presto homenagem reiterada) e Cecília Vieira de Freitas demarcaram um território de saber e paixão pela arte. Curiosamente, associei-me às comemorações do trigésimo aniversário desse espaço com a curadoria de uma exposição intitulada Ilhéstico, em 2019. Associar-me agora à Celebração e Resiliência da Galeria Fonseca Macedo é, então, motivo de regozijo e reconhecimento da trajetória ímpar desta estrutura.
A presente exposição reúne artistas de três gerações diferenciadas. Todos trabalham aqui em suportes bidimensionais, ainda que nos respetivos percursos criativos abarquem áreas como a escultura, a instalação ou a cerâmica, entre outras.
Pedro Cabrita Reis mantém uma relação primordial com a natureza que lhe serve de referente existencial para uma conversa contínua com a intemporalidade desejada do gesto artístico. Numa entrevista de 1990, conduzida por João Pinharanda, afirmava: “A arte pretende transformar, mas não no sentido propositivo em que podia ser entendida como a transformação mecanicista do real. A arte tem uma inteligência própria, como a matemática e a poesia — é uma zona não redutível à palavra; vem sempre antes da palavra.” A inteligência discursiva deste artista ecoa, numa medida superlativa, com inequívoca singularidade na materialização plástica. As obras agora apresentadas correspondem a uma espécie de sábia ocultação de qualquer tipo de verismo, onde o gesto ganha uma espessura estruturante; aqui, a pintura é pura sensação, corroborando a afirmação do autor quando define a arte enquanto um fechamento, ou um olhar interior que nessa rememoração reifica o que está para além do circunstancial.
Já no caso de Maria Ana Vasco Costa, a natureza é convocada a partir de uma substantivação da abstração pura. Aqui as formas aquosas repercutem estratificações milenares num encontro ideado com as origens longínquas de paisagens concetuais. Num movimento em certo sentido oposto ao de Cabrita Reis, a artista procede a uma desocultação que se desvela em luz. Na profundeza de um oceano ou na escuridão de uma gruta, é a luz que nos revela as tessituras magistrais dos espaços intocados. É precisamente essa analogia que aqui sublinho: a da possibilidade de a proposição artística fazer ver o belo intuído.
Ofício do pensar e do ver. João Miguel Ramos cria, através das suas obras, uma alegoria ao trabalho criativo. A mesa é o encontro físico com essa energia: da escrita, mas também do desenho ou pintura (refira-se aqui, por exemplo, a importância que a mesa teve em grande parte da obra plástica e literária de Álvaro Lapa). A referência a mestres da pintura não é tanto uma particularização de um qualquer culto de personalidade, antes uma apologia desse fazer oficinal que determina a preocupação — sem cronologia e geografia —, de todos aqueles que se debatem com a folha ou a tela branca. Uma árvore, luz e uma mesa. E, num sussurro longínquo nesta celebração, a velha máxima de Robert Filliou: a arte é aquilo que torna a vida mais interessante do que a arte.
Miguel von Hafe Pérez