corpo de pedra
RUI CHAFES | SANDRA ROCHA
Ao primeiro embate, tanto as fotografias de Sandra Rocha como as esculturas de Rui Chafes evidenciam uma certa impossibilidade de dar nome às obras, ao mesmo tempo que solicitam dos espectadores um envolvimento íntimo, demorado e corpóreo. Embora se pudesse considerar improvável este encontro entre dois dos artistas visuais mais destacados no panorama da arte contemporânea portuguesa, com práticas muito próprias e percursos diversos que não dariam para resumir aqui, em ambos os casos, o relacionamento prolongado com estes trabalhos acaba por revelar, em última análise, a incapacidade comum de os conter numa simples fórmula conceptual, ou de um modo mais geral, a desnecessidade da palavra perante as obras. Os títulos são disso exemplo. Quando não estão ausentes, recusando fornecer as pistas ou chaves de leitura, passam muitas vezes pela simples indicação de substantivos concretos (e jamais abstractos) da maior sugestividade sensorial – como pedra, corpo, areia, pele —, pela mera marcação geográfica de uma presença física no mundo —como Açores, China, Geórgia –, ou pela evocação fragmentária de uma imagem literária em fuga. Algo da resistência partilhada destas obras em serem traduzidas em discurso levou a que, nos dois casos, a poesia se tenha tornado um método privilegiado de abordagem por parte dos críticos, enquanto forma oblíqua de dar conta da sua teia de relações afectivas entre corpo e espaço cuja intensidade nunca fica refém de uma descrição ou de uma explicação. Ou seja, não se trata aqui nem de linguagem, nem de comunicação. Nesse sentido, os posicionamentos de Sandra Rocha e Rui Chafes subvertem os dois suportes artísticos sobre os quais mais pesam essas velhas expectativas: não são fotografias nem esculturas de ou sobre algo.
Privilegiando o potencial poético da obra sobre a narração de uma mensagem, Sandra Rocha e Rui Chafes navegam em contracorrente ao alarme frequente da crítica contemporânea sobre a progressiva transformação da arte em teoria — a discussão que remonta aos primeiros românticos alemães como Fichte e Novalis, referências capitais no trabalho de Rui Chafes, e que culminou nesse famoso prognóstico de Hegel sobre a crescente tendência da arte para se distanciar do belo ou da percepção, tornando-se cada vez mais discursiva e teórica até se converter finalmente em filosofia, passando “da poesia da imaginação para a prosa do pensamento”. Não por acaso, prevalece no tipo de experiência estética aqui proposta um modo muito particular de atenção, de sensibilidade e de presença dos elementos da ordem natural — ora partindo de uma deambulação pessoal por espaços geográficos e emocionais que resulta numa série de visões incandescentes, no caso das fotografias, ora forjando a matéria alquimicamente para gerar morfologias encantatórias, no caso das esculturas. Essa noção romântica do mito é, por conseguinte, recuperada nestas obras, mergulhando no imaginário telúrico e recusando a sua instrumentalização racional, numa sucessão de espaços suspensos ou de tempos deslocados que, no fundo, aspiram a uma intemporalidade feita a partir das contingências, tingida pela melancolia e pelo desejo, pelo vazio e pela forma, pela perda e pela elevação. Italo Calvino propôs um dia explicar a literatura através de dois fenómenos naturais na origem dos seres vivos, o cristal e a chama, isto é, entre uma organização explícita de estruturas diferentes e uma aparência constante que nasce da ebulição interna. Só um vocabulário desses permitiria acompanhar esta exposição, mas melhor ainda seria prescindir dele, dado tratarem-se de obras sem ponto de chegada.
Afonso Dias Ramos
Setembro 2024
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