Resiliência

Urbano

12 Maio | 30 Junho, 2022

Obras

Press release

: Cuido Ser Dádiva

A porta 65 abre e fecha como qualquer e também como nenhuma outra. É única, como em certo sentido o são todas as portas. Mas esta diferencia-se das demais ao cumprir a função cénica de passagem para um interior enleado de sinais e significações, espaço híbrido em que o concebido e o vivido coincidem, onde a obra e o autor adquirem forma simultânea. Local de uma primeira conversa sobre Resiliência, o atelier deixa-nos a impressão de conter tudo o que as palavras possam dizer sobre a obra. Aí, a pintura confunde-se com as evidências do fazer cumulativamente sedimentadas ao longo de mais de quatro décadas de criação, sendo também o espaço de uma solidariedade afetiva particular, dimensão de autoconhecimento específica do retorno à terra, a casa, ao lar. Reduto introspectivo e prospectivo, o atelier de Urbano é em si mesmo a obra e o seu reflexo, extensão de um corpo e evidência da sua resiliência.

Resiliência destaca-se do espaço de criação sem dele soltar-se de facto, assumindo a filiação à matriz de uma pintura que emana do chão e do chão não se desprende. Esta afinidade orgânica encontra a sua primeira expressão na camada espessa e texturada que constitui a base da pintura de Urbano. Não se trata de preencher um vazio emprestando um fundo à representação, mas de criar assento, o que, por sua vez, não é mero suporte, mas, sim, lugar. No próprio lugar, situa-se, então, o modo de olhar: cores dispersas em gesto de semear sensações às quais se dão linhas sucintas que esboçam mais a familiaridade das formas do que as formas em si, num contraponto de síntese sobre a essência das coisas mesmas. E em todo o lugar os rastos de mão têm relevo e relevância. Em Elogio da Mão, Henri Focillon ajuda-nos a situar esta comparência sensível ao referir que:

A mão é ação, ela cria e, por vezes, seria o caso de dizer que pensa (…) A ação da mão define o oco do espaço e o pleno das coisas que o ocupam. Superfície, volume, densidade e peso não são fenómenos ópticos (…) A possessão do mundo exige uma espécie de faro táctil.[1]

Dir-se-á, então, que a mão pensa o lugar da pintura no seu modo próprio de vincular-se a um mundo sentindo a terra. É a terra que formula o enunciado de Resiliência, referencial de origem que não se separa do tempo, um tempo ritmado pela cadência cíclica da natureza e da vida, do nascimento e da morte, do dia e da noite, das fases lunares, das estações do ano, conotado em luz, vitalidade, renovação, esperança, sabedoria, serenidade, espiritualidade, a que se associam as dominantes de amarelo, verde e azuis-púrpura (#16, #17, #18), evocado ainda nos elementos visuais que desenham tacitamente um arco temporal (#1, #2) (#3, #4), particularmente perceptível no caso dos girassóis que oferecem a sinopse destes ciclos em quatro painéis justapostos (#12, #13, #14 e #15).

“Era Março e chegou a primavera com a sua imensa explosão de cores” – refere Urbano [2], recuando ao momento inicial e mote de Resiliência – exuberância que a obra expressa e que #9, #10 e #11 exibem em profusão. Mas se Resiliência confirma a primavera em uma constelação de sentidos vizinhos, ela não deixa, contudo, de informar o seu contrário. Verso e reverso, as faces antagónicas da pandemia inscrevem-se em simultâneo na memória, sublinhando a fragilidade humana mediatizada à escala global. Neste sentido, Resiliência define-se como tal devolvendo-nos ao nosso devido lugar. O artista fala de um alerta e da urgência de um “olhar cuidado sobre este mundo que nos acolhe”.

Para o comunicar, Resiliência inscreve este olhar na dimensão mítica do conhecimento que o inconsciente preserva e que o imaginário resgata revendo-se na universalidade do seu património simbólico. Expressão exemplar de uma inquietude comum, os mitos têm o mérito de apaziguar a face do desconhecido exaltando as forças misteriosas que ditam a fragilidade da vida e a contingência da existência, efeito aparentemente contraditório, porém, ou por isso, ajustado à experiência vivida. Verdadeiros no que têm de fiel ao modo de formular as grandes questões, os mitos não facultam respostas, mas, antes, uma visão unificada do mundo à qual vincular o sentimento de pertença e o sentido de continuidade.

Do vasta legado de mitos, lendas e fábulas de diferentes épocas, culturas e regiões, sobressai a afinidade resultante da confluência de uma miríade de nuances discursivas em um modo de conhecimento que não contempla a separação entre o homem e o mundo natural, entre o natural e o sobrenatural, entre o espaço e o tempo, a coisa e o seu nome. Algumas narrativas falam de um contínuo ao qual atribuem um ente que personifica a relação com a terra; outras falam de passagem entre um contínuo (a natureza sacralizada) e um descontínuo (sociedade, cultura) que comporta um dualismo ou estado de tensão entre forças criadoras. A estas associam-se dois mundos, o terrestre e o celestial, assim como figuras de mediação que se relacionam com a água (partilhada entre a terra e o céu) ou com fogo (o do interior da terra e também o que cai do céu em forma de trovão). Entre mundos, os humanos interrogaram-se sobre a sua existência e encontraram-na inscrita na ordem natural das coisas.

A este respeito, uma fábula registada por Hyginus (século I a.C.) apresenta-se oportuna pelo cuidado que introduz na ordem do pensamento:

Certo dia, Cuidado (Cura), ao atravessar, pensativa, um rio, viu um terreno de barro do qual decidiu extrair um pedaço e dar-lhe forma. Enquanto refletia sobre o que fizera, apareceu Júpiter (deus do céu e do trovão) a quem Cuidado pediu que insuflasse espírito na criatura que havia moldado. Júpiter acedeu. Mas quando Cuidado quis nomear a criatura, Júpiter exigiu que lhe fosse dado o seu nome. Surgiu, então, Terra (Tellus) que logo quis dar o seu nome à criatura pois que esta fora feita de um pedaço seu. Começaram uma acalorada discussão. Concordaram, contudo, em pedir a Saturno (deus do tempo) que ajuizasse sobre a questão, e este tomou a seguinte decisão que lhes pareceu justa: Por ter dado o espírito, Júpiter o receberá de volta por ocasião da morte da criatura. De igual modo, por ter dado o corpo, Terra o receberá de volta aquando da morte da criatura. E a Cuidado que a moldou ficará a criatura entregue durante a sua vida. Quanto ao nome, e uma vez que há entre vós discordância, decido eu que esta criatura será chamada Homem (homo), isto é, feita de húmus que significa terra fértil.

A fábula destaca-se de entre as muitas narrativas que coincidem na origem deste homo, feito de terra, ao introduzir na sua génese o cuidado como matéria específica de reflexão. De facto, como sublinha Borges-Duarte, na narrativa, “a condição humana não é cunhada nem pelo espírito, nem pelo corpo, que lhe são emprestados em vida, (…) mas por aquilo que lhe deu forma – o Cuidado.”  A autora recordando-nos que “o campo semântico de cuidar e de cuidado guarda, no português atual, o sentido original de uma etimologia inesperada: a do latim cogitare, pensar. Na forma transitiva, cuidar é pensar: atender a, refletir sobre – e, por isso, interessar-se por, tratar de, preocupar-se por, ter cautela com.” [3] A tónica é, portanto, a configuração da natureza relacional e condicional do vínculo com o mundo, definida na intencionalidade da criação e do criado assente em um duplo cuidado – o de refletir sobre, e atender a – ao qual faz corresponder a vida. O cuidado insinua, portanto, a noção de limite(s).

Em face de forças tão poderosas, não admira que tenha sido sob um temor místico, sujeito a rituais complexos em preceitos e proibições, que o ser humano ousou replicar o feito em seu próprio proveito. Assim aconteceu com a cerâmica. Tão próxima do verso da mão de que nos fala Focillon[4], mas capaz de conter e manter em si o fogo vivo, a cerâmica, na sua primeira e mais rudimentar forma de receptáculo, foi prodigiosa em devir civilizacional ao consentir que o Homem tomasse em mãos o fogo, tomasse posse do fogo. Também chamada “Mãe-Terra, Avó da argila, Senhora da argila e dos potes de barro”[5], a cerâmica integra os mitos associada a disputas cósmicas entre opostos que se complementam, que se atraem e repelem, como o fogo e a água, o quente e o frio, o dia e a noite, o sol e a lua, a terra e o céu. Por isso, a ela se atribui um carácter temperamental, susceptível e mesmo ciumento.[6] De domínio sensível, reflexo da necessidade de apropriar um sentido do mundo, de dar-lhe forma, estrutura, ordem, a cerâmica apresenta-se, assim, como metáfora da cultura, produto da intencionalidade da ação criadora do Homem no mundo.

Sobre este lugar metáfora o artista inscreve a iconografia de Resiliência cuja síntese elementar – terra, água, ar, fogo – se abre no feminino ao sentido de habitar. A concordância terra-fertilidade-mulher como réplica da estrutura cósmica, a que alude Mircea Eliade em O Sagrado e o Profano, está na origem do prestígio mágico, religioso e, consequentemente, social da mulher nas sociedades arcaicas. A mulher absorve a expressão mítica da auto suficiência e da “fecundidade espontânea” da Terra, dela recebendo igualmente os poderes que exercem uma influência decisiva na vida das plantas. Foi a mulher a primeira a cultivar a terra tornando-se, assim, senhora do solo e das colheitas.[7] Quase unânime, foi também à mulher que os deuses confiaram a arte da cerâmica. Moldar a terra e moldar-se à terra, cerâmica e agricultura, têm mão de mulher, e o que esta mão cria como condição de habitabilidade é um microcosmos social. É ela que estabelece o vínculo ao lugar, a ela se prende, portanto, o habitat.

A mão de que falamos é a do arquétipo, a mão bíblica que agarra o fruto, a mão curiosa, que experimenta, compreende, interpreta, transforma, a mão técnica que manipula e também a mágica que envolve de mistério esta habilidade criadora. É a mão da sociabilidade primária e fundamental, a mão intuitiva da linguagem, tal como a que se estende pela primeira vez. Nelas, mãos, assenta o princípio fundacional da civilização: o dar e o receber – mímica que nos precede desenhando um círculo de reciprocidade.

Marcel Mauss, em O Ensaio Sobre a Dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas, fala de um “jogo de dádivas” e descreve-o como um sistema de intercâmbios animado de uma “virtude especial” que faz com que as coisas circulem, sejam dadas, recebidas e, sobretudo, retribuídas.[8] Trata-se de um ritual de prestações cuja dinâmica da transferência não se confunde com a da troca; compreende uma contraprestação, mas esta que não é imediata e também não é simétrica: recebe-se para dar e dá-se para que se dê, num circuito que sempre reencontra a origem. A atenção é, assim, desviada do objecto para a ação, deslocada da coisa para o poder investido nela ao circular – o espírito da coisa. E o que assim circula é um valor simbólico: simultaneamente material e imaterial, de ordem social, económica, política, jurídica, moral, espiritual. Neste sentido, a dádiva age em representação de, assume a face de, avança em nome de. Enquanto modo de organização das sociedades, o jogo da dádiva pode ser entendido como um “sistema de prestações totais”[9] cuja orgânica Mauss traduz nestas palavras:

As pessoas dão-se ao dar, e, se as pessoas se dão, é porque se “devem” – elas e seus bens – aos outros. (…) Trata-se, no fundo, de misturas. Misturam-se as almas nas coisas, misturam-se as coisas nas almas. Misturam-se as vidas, e assim as pessoas e as coisas misturadas saem cada qual da sua esfera e se misturam…[10]

Na semelhança do Cuidado, o que está em causa na dádiva é a configuração da qualidade relacional do vínculo que, neste caso, se estabelece entre indivíduos, famílias, grupos, mas também entre estes e o lugar que habitam, a terra e o que esta oferece, a natureza e o que a ela pertence – numa dinâmica constitutiva da própria comunidade. Neste sistema de interdependências ou, mais justamente, de reciprocidades, não há separação entre o ser e a coisa, nem antítese entre o individual e o coletivo, o sagrado e o profano. A aparente recusa da cisão que atravessa o universo destas narrativas sugere uma estrutura de pensamento e de ação que se realiza na mira de uma totalidade concebida por forças opostas que se equilibram reciprocamente. O espírito da reciprocidade, paradigma do habitar, recebe, em Resiliência, a carga simbólica acrescida pela representação de um corpo-regaço. O que aí se constitui como dádiva é a vida, mas o milagre é o regaço em si: abrigo, refúgio, cuidado, modelo da terra-mãe, corpo de Resiliência. (#3, #4, #…)

No seu todo, Resiliência imiscui-se no espírito das coisas pela raiz. Da extremidade mais distante a esta outra que nos é próxima, alteraram-se os modos de contar a história. Criámo-nos “dessacralizando o mundo” – escolha existencial não desprovida de grandeza – como refere Eliade – ainda que esta assuma uma dimensão trágica. Mas o homem profano conserva vestígios da sua ligação originária com o sagrado.[11] Resiliência atualiza esse lugar-memória absorvendo dos modelos o que estes expressam por inteiro reinscrevendo-o no que o presente manifesta de incompleto. Fá-lo talvez porque “toda a crise existencial põe de novo em questão, ao mesmo tempo, a realidade do Mundo e a presença do homem no Mundo.”[12]

Estes apontamentos sobre o espírito de Resiliência encontram-se no espaço aberto pela porta 65, escritos no livro de que nos fala Urbano[13] referindo-se ao corpo inteiro do seu trabalho, livro onde – nas palavras do autor – “se desenvolvem três histórias, distribuídas por capítulos que vão surgindo ao longo do tempo (…), e que, sendo aparentemente distintas, acabam por ser uma só” ou “assentam numa mesma base”: “de onde viemos, o que somos, para onde vamos” – três questões interligadas cuja reflexão não se desprende do lugar e dos modos de o habitar. Resiliência situa-se neste substrato a partir do qual comunica que é o lugar que urge pensar – o lugar que é ainda o único de pertença, e que, sendo hoje demasiado real para ser mítico, não obstante e precisamente por isso, é demasiado sagrado para não ser cuidado.

Resiliência: Cuido Ser Dádiva.

Leonor Pereira

[1] São Paulo: Instituto Moreira Salles (Clássicos Serrote), 2012, pp. 6, 10, 11.

[2] Em entrevista concedida a Carlota Pimentel, Atlântico Expresso, N.º 1872, Ponta Delgada: 30 de Maio de 2022 (pp. 8-9), p. 8.

[3] Borges-Duarte, Irene. “A fecundidade ontológica da noção de cuidado” em Ex-Aequo, N.º 21, Coimbra: 2010, pp. 115-131.

[4] Elogio da mão, São Paulo: Instituto Moreira Salles (Clássicos Serrote), 2012, p. 7.

[5] Lévi-Strauss, C., A oleira ciumenta, São Paulo: Brasiliense, [1985] 1987, p. 40.

[6] Como consta em múltiplos exemplos da coletânea de mitos ameríndios de Claude Lévi-Strauss intitulada precisamente A Oleira Ciumenta.

[7] Eliade, M., O sagrado e o profano, São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 72.

[8] Mauss, M., “Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas” em Sociologia e antropologia, São Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 242.

[9] Idem, Ibidem, p. 191.

[10] Idem, Ibidem, pp. 263 e 212.

[11] Eliade, M., O sagrado e o profano, São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 98.

[12] Idem, Ibidem, p. 101.

[13] Atlântico Expresso, N.º 1872, Ponta Delgada: 30 de Maio de 2022 (pp. 8-9), p. 8.