As fronteiras entre os géneros tradicionais da pintura, como por exemplo, o retrato, a natureza morta, a paisagem, a pintura abstracta, tiveram tendência para se diluir, mas, mais importante ainda, procuraram olhar para dentro de si próprios e da sua história de uma forma que agora se torna muito mais evidente, embora pudéssemos encontrar a origem desta atitude em experiência de épocas anteriores. Por exemplo, se pegarmos num género clássico da pintura como a natureza morta, que perante estes quadros de Victor Almeida verificamos ser, aqui, a referência do autor, constatamos que a natureza morta já não se liga apenas à representação material dos objectos, nem tão pouco apenas serve de ponto de ancoragem para a descoberta da essencialidade da matéria ou da originalidade de uma visão, mas que terá de lidar com uma pensada apreensão da própria história do género, tentando ultrapassar a sua “saturação” pela possibilidade de todas as misturas e apropriações que esse olhar retrospectivo lhe apresenta. A busca da pureza ou da originalidade de uma visão despreconceituosa é agora substituída pela originalidade dos encontros improváveis, e dos sabores das novas misturas as quais, no âmbito de outro tipo de pensamento, seriam implausíveis ou impossíveis de ser colocadas. Há sempre o risco de chocar ou o nosso gosto constituído ou as nossas tentativas de justificação. Mas, apesar desses riscos, esta nova situação na arte criou caminhos e possibilidades que muitos artistas não hesitaram em percorrer.
Victor Almeida opera aqui, no meu entender, um movimento que poderíamos classificar como anti-decorativo, ao transportar para o centro de interesse, para a parte “ainda” viva da natureza morta, um recurso tradicionalmente reservado para o que está “à volta”, para a decoração do cenário ou para o enriquecimento de atributos do motivo principal: o dourado, a folha de ouro. É este movimento implausível que constitui o esqueleto da apreensão sensível dos quadros, é por aí que eles imediatamente nos atingem. É esta não-decoração que coloca o espectador, principalmente aqueles que reconhecem as referências, ( Matisse, Klimt, a pintura pré-renascentista), perante a estranha sensação “do não ser assim” que é o risco e um dos interesses das pinturas e desenhos aqui apresentados.
João Queiroz
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