“O trabalho de Sandra Rocha é sobre o tempo. Sobre o tempo sobre as pessoas e as coisas. Não sobre um tempo que passa, que marca rostos e corpos e neles se mede. Mas sobre o tempo que pára sobre as coisas e as pessoas.
As coisas são elementos soltos da casa (objectos e adereços que não nos dão nenhuma ideia de unidade ou apaziguamento doméstico) e são cenários naturais tomados em enquadramentos fechados (não nos garantindo nenhuma liberdade de fuga). As pessoas (Anticylone, 2014) interagem com os objectos, não interagem com os cenários, mesmo quando neles se integram totalmente: estão de pé frente aos cenários ou entram neles (estão dentro de água, estão rodeadas de vapor), pousam e poisam nos cenários.
Outras imagens há em que Sandra Rocha visualmente nos engana: a Natureza são afinal papéis de parede e cenários pintados degradados pelo tempo (Le Silence des Sirènes, 2016). Globalmente, são universos de água. Talvez de uma água primordial, uma água, com a qual a fotografia tem uma relação simbólica: a água que revela e que apaga, que flui como o tempo e que marca o tempo. O mar, as piscinas, a humidade, as nuvens e os vapores das fontes termais açorianas, as cascatas e os lagos, conduzindo tudo a uma vegetação verdejante-lugares onde há corpos que se banham e se expõem.
As pessoas, nestas fotos, são quase exclusivamente mulheres, maioritariamente adolescentes ou jovens adultas; surgem também algumas crianças-ou seja, as excepções àquela regra dominante são as de seres (ainda ou já) sem idade e (ainda ou já) sem sexo. Os verdadeiros modelos, sobre os quais Sandra Rocha trabalha e constrói o seu discurso, estão fixados no tempo, existem num momento especial e irrepetível-estão na fronteira da idade adulta ou acabam de a atingir, o tempo de que dispõem parece infinito e imutável, um tempo suspenso que parece poder parar sem lhes tocar, uma sensação de eterna juventude.
Também isso parece ser o desígnio evidente desta série. Mas esse ilusório papel da fotografia (o de fixar o tempo, o de o paralisar) é contraditado dentro da própria dinâmica do processo de trabalho e selecção de imagens. Isso é notório, logo na série de 6 imagens que ocupa o primeiro núcleo da exposição: olhamos (nunca estaremos seguros que ela nos olhe) uma jovem de longos cabelos louros, em plano frontal (quase em corpo inteiro), imperturbável (no que se afasta do diálogo erótico desencadeado pelo rosto expressivo, e em close up, da mulher que Roni Horn fotografa nas fontes termais da Islândia (You are the Weather, 1994-96); mas, também, sem exibir qualquer fragilidade (no que se afasta de toda a comparação com a poética de desamparo das sucessivas séries de jovens que Rineke Dijkstra fotografa em corpo inteiro em cenários desérticos). Há porém, uma relação possível a estabelecer com ambas, a atenção ao ambiente que rodeia as personagens da sua obra (ambiente cenográfico e ambiente atmosférico, relevação de ambos como experiências de desolação e/ou de limite) e a apresentação frontal dessas personagens, que já referimos.
No entanto, a relação enriquece-se em Sandra Rocha pela exploração do duplo significado da palavra tempo. “”Tempo””, nas línguas latinas, quer dizer simultaneamente, passagem cronológica e caracterização climática. A jovem das seis primeiras fotos situa-se simultaneamente em relação ao “”tempo que passa”” e ao “”tempo que faz””: em relação ao primeiro, parece uma heroína de saga cinematográfica, rosto fechado, desafiante, imune à passagem do tempo, imutável; em relação ao segundo, porém, revela toda a fragilidade de um ser sujeito ao acaso do vento instável que move o vapor sulfuroso e pesado, de cheiro desagradável e temperatura incómoda que a rodeia.
Este preâmbulo prepara-nos para a segunda sala onde nos confrontam três grupos de imagens em díptico; nelas, os corpos parecem reagir a diferentes condições de temperatura, de cenário e de tempo cronológico. Todos os três grupos de imagens insistem no duplo registo do tempo e também num duplo registo do espaço (o espaço fechado do cenário e o espaço fechado do corpo) que a primeira sala definiu.
No único díptico constituído por duas fotos, uma figura envolta num negro capote açoriano (pesada peça de vestuário tradicional usada por volta do século XVII e XVIII pelas famílias mais abastadas) onde o corpo (incluindo o rosto) fica totalmente escondido, recorta-se numa paisagem diagonal e quase bidimensional onde se pressente o vento e o frio. Na imagem complementar, vemos a rede leitosa e translúcida do casulo de um insecto no galho de uma árvore-são duas ideias de casa, de fechamento e protecção.
Os dois restantes dípticos são constituídos por uma fotografia e por um vídeo em loop e colocam-nos num ambiente paradisíaco, verde, húmido, de novo quente. No primeiro, o corpo de uma adolescente: quase andrógino na sua extrema juventude, é um corpo marcado por pequenos ferimentos, acocorado, a cabeça escondida e o olhar lateral, fechado sobre si mesmo (não sabemos se despido), protege-se de tudo o que o rodeia, principalmente do olhar dos outros sobre si. No ecrã, uma cascata (e o seu som) abrem uma ferida na carne, de onde a água escorre marcando o tempo (e podia ser sangue ou leite ou vinho ou outra bebida sagrada).
No último dos dípticos da sala, revemos a rapariga da entrada. Agora é apenas rosto de um corpo mergulhado no pequeno lago sob a cascata. Tudo em redor são gotas e fios de água que caem. A sua expressão de mutismo e desafio, não mudou. Ao lado o vento move, leve mas audível, um troço da floresta. Em nenhum caso há um ponto de fuga nesta espécie de quartos fechados forrados de vegetação luxuriante. O confronto entre o plano fixo da fotografia e o plano em movimento do vídeo, o som (mas também, no caso irrepetível desta montagem, o cruzamento dos dois sons) são elementos também decisivos para nos explicar o trabalho de Sandra Rocha.
Denunciando um incómodo onde, num primeiro olhar apenas vemos beleza e harmonia, o seu trabalho é, afinal, sobre a resistência dos corpos à condição a que os remetem: o tempo é uma metáfora e os cenários e as poses são estratégias que servem a Sandra Rocha para nos dar os retratos encenados de uma humanidade feminina consciente da sua condição de perigo, impenetrável ao voyeurismo erótico masculino, absolutamente indisponível para ceder o seu lugar.”