Colectiva – E Aqui Há Tantos Arco-Íris

Augusto Alves da Silva João Queiroz José Paulo Ferro Miguel Branco Miguel Palma Pedro Cabrita Reis Pedro Proença Sandra Rocha Sofia Areal Victor Almeida

19 October | 29 October, 2017

Works

Press release

LC: Sandra, como é que isto começou?

SR: Por uma vontade da Fátima fazer uma exposição colectiva. Eu tinha inaugurado na galeria uma exposição no Verão, “O Calor do Corpo”, e nesta altura a Fátima desafiou-me para olhar para o acervo da Fonseca Macedo. Pensámos em paisagem e depois eu pensei na paisagem que eu poderia ver de uma janela. E daí comecei a procurar como é que cada artista vê a natureza ou trata a paisagem. Um abrir a janela. Quando eu abro a minha janela o que é que eu posso ver?

Assim, naturalmente comecei a ver os barcos do Miguel Palma, um fundo de piscina na tela azul do Victor Almeida, eu própria dentro da pintura da Maria José Cavaco, olhar para o Müller e ficar entre os Alpes e a manga japonesa, a Terceira e o mundo na fotografia do Augusto Alves da Silva. Na tela branca do Victor Almeida vi todas as cores, o branco condensa todas as cores – poderia ser o espectro do arco-íris.

LC: (E aqui há tantos arco-íris, inteiros, perfeitos, visíveis de uma ponta à outra.)

SR: No Alves da Silva está o registo de uma parte importante da história do mundo: o dia em que o Aznar, o Bush e o Durão Barroso estiveram na Terceira a decidir a guerra do Iraque. Eu estava lá neste dia, havia tão poucos manifestantes à porta da base militar das Lajes, talvez uma vintena. O Augusto não está a falar da paisagem da ilha, nem da paisagem de uma forma mais genérica, está a falar daquele momento histórico. Porque aquelas imagens do cerrado existem em qualquer postal da Terceira.

LC: Eu vi o conjunto das fotografias do Alves da Silva reunidas e é incrível. Ao ocuparem as quatro paredes de uma sala rectangular situam-te num centro da ilha, a partir do qual giras para olhar para os limites daquela terra no meio do mar. Observas numa panorâmica o perímetro da ilha a 360 graus, arrastando-te para esse dia. A fotografia adquire um lado performativo ou de instalação, já que te convoca o corpo e o seu movimento — convidando-te assim a uma deslocação no tempo, que é também uma inquirição sobre o teu posicionamento histórico e político. Coloca-te no centro dessa paisagem-acontecimento. E, de certo modo, cerca-te, obriga-te a participar nele. Não podes escapar à História. A tua isenção não é uma possibilidade. Mesmo que aí só queiras ver “paisagem”. Também isso é já um posicionamento político.

E mais, porque é que gostamos do Müller nos Açores?

SR: Tu é que falaste dos efeitos de focagem! Olha eu a dar-te a volta…

LC: Há ali uma duplicidade ou ambiguidade de leituras que me parece decorrer de um efeito de focagem, de como focas aquela imagem. Tanto ali podes ver a paisagem dos Alpes que referes (ou a imagem difundida que temos dos Alpes), como, se te afastares um pouco e a focares de outro modo, podes ver uma abstração de paisagem, como um padrão ou como as tuas paisagens fingidas com papel de parede. Ou seja, se calhar é mais a imagem difundida de uma paisagem imaginada e nunca vista que perde os seus contornos no seu uso de imagem repetida, o referente da imagem a dissolver-se em cor e movimento de tanto o vermos e gastarmos. Como aquelas brincadeiras de criança, nas quais dizemos muitas vezes seguidas a mesma palavra até ela perder o significado.

Porque é que decidimos pôr o teu fogo ao lado do azul e do branco do Victor Almeida?

SR: Porque é um contraste brutal entre o frio e o quente, entre pintura e fotografia, entre a pintura que é abstracta e o fogo que é concreto.

LC: Mas o fogo também não tem corpo, não é palpável.

SR: É etéreo. Mas porque é que consideraste o fogo uma paisagem?

LC: Porque o posso ver da minha janela, como dizes. Por um lado, ocorreram-me os incêndios trágicos deste Verão. Por outro, porque me levou para um lado mais simbólico do fogo, como elemento purificador, catártico e de mudança. Lembrei-me então de uma coisa muito bela que li do Cocteau. Perguntavam-lhe: “Se a sua casa estivesse a arder, o que é que levaria? — O fogo”.

SR: Isso é lindo!

LC: E porque é que fotografaste o fogo?

SR: Porque nos meus últimos projetos tenho-me interrogado sobre a fragilidade e a força do ser humano e a forma como este se relaciona com a natureza e os quatro elementos. E o fogo pode ser nós, visto este ser uma mistura de substâncias, ou pode ser o sol que nos aquece. E sem ele não há vida. Presenciei este fogo no meio de campos finlandeses num 24 de Junho, altura em que se comemora o São João. Na fotografia que faço trabalho muito com a noção de escala: o fogo que aqui vês devia ter uns 20 metros!..

LC: que bonito… lembra-me um dos momentos mais incríveis que vi com o meu pai nos últimos tempos, uma vez em que nos dirigíamos pelos campos do Mondego, ao cair do dia, para a Figueira da Foz. Era um tempo em que aqueles campos imensos e planos de arroz já tinham sido cortados. Depois de uma curva, localizados num ponto mais alto a partir do qual se abria um imenso plano de campo com um horizonte longínquo, vias, nesse limiar em que a noite desce, a palha do arroz a arder, como se fossem desenhos de fogo a serpentear a paisagem. Era tão bonito. E foi bonito por dois motivos: pelo deslumbre do espectáculo em si e por o meu pai, de tal modo ter compreendido o meu deslumbre com aquele momento (que ele já conhecia) e o ter partilhado, que deu a volta, para o vermos outra vez — como se ali chegássemos pela primeira vez uma vez mais.

Do que é que ainda não falámos?

SR: Do salon. Como é que começámos isto? Porque começámos a reconhecer afinidades entre as obras. Tu referiste que a disposição do salon permite diferentes leituras, devolve a liberdade de escolhermos para o que olhamos, de seleccionar o que focas. Há uma aleatoriedade naquela disposição ou no que se decide focar. Este conjunto também tem um lado que não há nas outras obras, que é o facto de ser pintura figurativa e que, por isso, te permite identificar o sítio: os campos do Queiroz, o poder viajar no tempo na pintura do Cabrita Reis, mas sabendo que estás nos Açores…

LC: … Eu quando olho para as obras do Queiroz parece-me que é sempre a mesma paisagem, não obstante o referente de onde possa ter partido (já que estas obras decorrem de uma residência aqui nos Açores). Um pouco como o Cézanne, com a montanha de St. Victoire. E a pintura do Cabrita, porque é que é evidentemente os Açores?

SR: Tu não vês os Açores aqui? É porque não és açoriana! Olha para os azuis do mar: tens o azul onde a onda bate e depois o negro. Claro que é Açores! Quanto ao Queiroz, há uma coisa que gosto nos desenhos e aguarelas dele, é a noção de globo que têm, porque faz paisagens circulares. Esse movimento circular da paisagem, deixada em suspenso, permite pressentir o que se segue.

LC: (Realmente não vejo os Açores na pintura do Cabrita Reis. Mas depois de ler um adjectivo num texto do Nuno Crespo sobre estas pinturas percebi uma ligação. O adjectivo, que no texto se referia às pinturas, era “espesso”. 1 E para mim há algo de espesso na paisagem ou na atmosfera dos Açores. Algo que te implica completamente, que te provoca reacção. Não é uma paisagem idílica pacífica, tranquilizante — é uma paisagem que te envolve, te toma e exige de ti uma resposta.) E o José Paulo Ferro, porque é que o escolheste?

SR: É um desenho que me faz pensar em fotografia, adorava abrir a janela e ver isto. E gosto porque sim.

LC: Falta-nos falar dos mapas do Miguel Palma. Na sua fragmentação e conjunto são um pouco como a obra do Alves da Silva, ainda que, dependendo da montagem do conjunto, possam convocar movimentos de corpo diferentes.

SR: Os mapas do Palma oferecem-me a ilha toda. E oferecem-me a ilha com agitação, porque a polui com barcos. Há um certo frenesim na peça.

LC: Achas que os barcos estão a acossar a ilha?

SR: Ele fala de piratas. Diz que os turistas são os piratas de hoje. E estes barcos, para mim, tornam a ilha urbana.

LC: Mas se calhar a ilha, hoje, não é só campo ou natureza. É também isso. Algo híbrido entre natureza e urbanidade, com o que isso comporta de permeabilidade a uma economia e estética globalizadas e massificadas. Ainda que a ilha seja vendida ou procurada como destino em grande parte devido ao mito de paraíso natural intocado e por descobrir. E é-o também, ou seja, é também um paraíso (não intocado, mas também construído, já que boa parte das paisagens que hoje nos deslumbram foram construídas pelo homem no séc. XIX); mas ao vender-se como tal e por tal ser procurada entra nessa lógica de comercialização turística, na qual todos os espaços se parecem assemelhar, o imobiliário se volta na sua maioria para o alojamento local, etc. Nesse sentido, a fragmentação da obra do Palma remete-me para um loteamento da ilha, como se fosse retalhada para venda e consumo.

A mensagem turística para “vender a ilha” é uma imagem da ilha. É também por isso que sugeri a pintura do Müller como imagem da exposição. Porque a imagem tipificada dos Açores para venda turística como a ilha verde com vacas e hortênsias tende a estar associada a uma qualquer noção de “autêntico” ou “genuíno” que são em si próprias construções identitárias historicamente localizadas. As vacas são recentes e as hortênsias foram trazidas para cá. Como a criptoméria ou os metrosideros ou as araucárias. Ou seja, parece-me que o acosso turístico para o qual o Palma nos chama a atenção tem de apelar a uma reflexão, mas o argumento em torno de uma “pureza” natural parece-me equivocado, porque um local, como uma pessoa, se tece num fluxo de trocas. E isto não é algo de agora. É assim desde sempre. O que essa reflexão retrospectiva nos permite é reconhecer que se todas as imagens identitárias do local são construídas (e não derivam de nenhum pressuposto essencialista) e historicamente localizáveis, poderemos, talvez, recuperar um poder de agenciamento sobre que identidade(s) e imagem identitária desejamos para o presente.

Para além disso, ao reconhecer nesta natureza manipulada um resultado de trocas globais, interessou-me também eleger a pintura do Müller como imagem de cartaz. Por um lado, como notaram os benandsebastian aos estarem aqui em residência este ano, as espécies nórdicas parecem ausentes dos jardins do século XIX, que reúnem espécies de todo o mundo (daí o pequeno jardim nórdico — Nordic Miniature — que propuseram para o parque Terra Nostra). Por outro lado, stylehá um truque da memória em relação às paisagens que retemos que faz que quando vejas certas paisagens de São Miguel pela primeira vez as associes, por exemplo, a Sintra ou precisamente aos Alpes suíços, como já ouvi amigos italianos ou de Sintra referirem. E isso, embora parecendo um acaso, não é fortuito. Quando personalidades da elite oitocentista micaelense, como José do Canto, construíram a paisagem micaelense, desenharam-na à imagem de Sintra ou dos Alpes suíços.2 Não necessariamente ou sobretudo da Suíça que viram, mas também da imagem da Suíça que circulava. É então que regressa a paisagem do Müller. Vemos e reconhecemos a paisagem através das várias lentes de imagens de que a nossa memória se compõe — como eu olhar para várias paisagens aqui e recordar-me de filmes de Tarkovsky, por exemplo — ou a própria paisagem foi já construída sob o repto das imagens que quem as idealizou transportava dentro de si? É essa dupla focagem e desfocagem, onde origem e causa se perdem, referente e imagem se baralham, que me parece estar também presente no Müller quando convocado para este contexto.

Para além disso, não me interessa abrir esta janela para a imagem do postal. Quero abri-la para o que aqui não posso ver. Como se o cartaz fosse um postal inesperado. Ou para passar aqui a ver isso depois de acrescentar estas imagens à minha memória.

PS:

LC: E porque é que aqui vemos o Pedro Proença e o Miguel Branco?

SR: Isso são as faixas escondidas da exposição… São as paisagens da Fátima, as da sua eleição. Mesmo se a pintura do Miguel Branco me permite ouvir o mar permanentemente.

LC: E as do Proença devolvem-nos a seriedade da brincadeira, a profundidade tão terapêutica de não nos levarmos muito a sério.

Curadoras: LC – Luísa Cardoso / SR – Sandra Rocha

1 Nuno Crespo, “Animais sensíveis. Sobre Pinturas Recentes de Pedro Cabrita Reis”, folha de sala da exposição “Pinturas Recentes”, patente na galeria de 6 de Outubro a 30 de Novembro de 2011.

2 Pedro Maurício de Loureiro Costa Borges, O Desenho do Território e a Construção da Paisagem na Ilha de S. Miguel,

Açores, na segunda metade do século XIX, através de um dos seus protagonistas, Dissertação de Doutoramento, na área de Arquitectura, especialidade de Teoria e História da Arquitectura, Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2007.