Press release

(De outro modo, para abastecimento da atenção e do estudo, descanso, colóquio, reiterações ou pernoita, reinventou-se a MESA – agora lugar, geográfico, posto que a petrificada natureza envolvente foi tornada, ela, o décor absoluto das possíveis rotinas.)

Álvaro Lapa, Raso como o chão, Lisboa, Editorial Estampa, 1977, p.15.

 

João Miguel Ramos elegeu a mesa como ponto de partida para uma divagação conceptual sobre a memória, a história da arte e a modernidade enquanto paradigma de questionamento do real.

Se na natureza morta clássica a mesa surge essencialmente como elemento estrutural da composição sobre a qual assentam os verdadeiros protagonistas do plano pictórico, a mesa nesta exposição adquire uma espessura singularmente desviante.

Aqui a mesa aproxima-se mais do dispositivo mental e existencial referido por Lapa: local de introspeção ou convivialidade cúmplice, nela se joga o fluxo de indeterminações decisivas que constituem a tessitura primordial da vida.

A pintura, por mais mortes que lhe tenham decretado, detém ainda essa qualidade única: sobrevive, e como poucos instrumentos na esfera da representação, dança (quando conseguida) soberbamente com a morte ao antever a sua inscrição nos futuros ainda não imaginados.

A mesa é lugar de destruição e reconstrução; tal como o inigualável Francis Bacon que afirmava que queria distorcer as coisas para além da aparência, mas na distorção trazê-las de volta para uma sua memória, as pinturas de João Miguel Ramos são exercícios de esquecimento atuante.

Podemos inferir um tempo de atelier, um tempo que pende entre a escuta e o silêncio, entre a visão e o fechar de olhos para a apreensão de uma métrica do pensamento. Aí o corpo mede-se a partir de objetos – trasladados em processo mais ou menos aleatório para o interior do espaço expositivo -, e das suas conotações mnemónicas. Não se tratam tanto de readymades, antes um pequeno léxico indexical da vida a deixar um lastro enigmático.

Luc Tuymans afirmou um dia que não lhe interessava a estética, mas sim a significação e a necessidade.

O percurso iconográfico desta exposição passa pela recuperação de aparelhos técnicos mais ou menos obsoletos de uma modernidade já com pátina. Aparecem fantasmaticamente em pinturas como eco da (in)comunicabilidade aderente às mesas.

Um espaço de dúvida. Um espaço que é vida cristalizada nas suas permanentes contradições e que se assume como afirmação contundente do ser para a morte.

 

Miguel von Hafe Pérez