ALTA PRESSÃO
Ceder às sirenes(?)
No âmbito de um projeto de criação proposto pelo laboratório BeBest, a agência de produção artística Fovearts e a sala de música atual La Carène, um músico bretão, François Joncour e uma fotógrafa açoriana, Sandra Rocha, exploraram as costas do Oceanum Nostrum, no Finistère e nos Açores, o tempo de uma temporada entre Portugal e França. Para compreender em profundidade os perigos ecológicos que ameaçam os espaços litorais, os artistas partilharam o mesmo terreno de pesquisa que os científicos do laboratório BeBest de Brest e do laboratório Okeanos nos Açores. As quatro instalações audiovisuais, assim como as imagens fotográficas, são uma tentativa paradoxal de recitar a beleza destes espaços marinhos em perigo. Os artistas exploraram o mito da sereia presente no imaginário destes dois territórios insulares, valorizando assim o trabalho dos oceanógrafos e ornitólogos, ao qual é urgente prestarmos atenção.
A figura da sereia é um mito tão fecundo quanto potente para interrogar a nossa relação, por vezes contraditória, com o meio ambiente e a forte negação perante a imensa catástrofe ecológica e humana atual. Na cultura bretã, as Marie-Morgane são criaturas belas, nascidas do mar (“Mor”), que se amam nas entradas das grotas submarinas de Morgat ou que atraem as embarcações de pesca para os rifes de Ouessant. Na mitologia grega, as sereias são criaturas aladas, metade mulheres metade aves marinhas. Elas seduzem os navegadores atraídos pelos sons sedutores dos seus cantos e dos seus gritos. Os marinheiros, desorientados, partem os barcos nos rifes antes de serem devorados por estas encantadoras.
Os dois artistas partiram à procura das sereias de hoje, explorando sucessivamente as costas negras e recortadas da ilha vulcânica da Terceira e as costas graníticas e batidas da ilha de Ouessant, no final do Finistère. No entanto, naturalmente, as sereias dessas costas fogem constantemente. Tocadas, encarnam-se nestes adolescentes luminosos e depois metamorfoseiam-se e retomam as suas formas aviárias para recuperar os céus azuis da ilha Terceira ou deslizar pelas costas enevoadas da Bretanha.
As sereias são invisíveis, mas visíveis em todo o lado e os dois artistas inspiraram-se mutuamente para nos guiar até elas.
São furtivas as presenças que as imagens orgânicas de Sandra Rocha desenham. As imagens, fixas e animadas, são extraídas das profundezas basálticas e graníticas, das irrupções de luz sobre as águas e das nuvens que borram os cumes dos vulcões. Sandra Rocha não se inspira nas terras que explora, mas cria imagens que as estendem e as tornam vivas no imaginário. A fotógrafa é alternadamente a sereia e a górgona. Ela conhece todos os caminhos que levam ao enxofre, sabe como pousar cada um dos seus passos para descer até à furna e capturar os últimos raios da noite que tornam fluorescente o musgo das encostas verdes. Ela direciona os seus personagens para que a luz se pouse perfeitamente na cascata de cabelo e na pele gotejante de um ombro.
O universo musical de François Joncour mistura sons captados pelos oceanógrafos, música eletrónica, vozes humanas, instrumentos de cordas e sopro. A sua textura sonora, encontra a escrita visual onírica, a cromia diáfana de Sandra Rocha, para dar vida a esta país de fadas, sedutor, mas venenoso.
As criações musicais inspiraram as imagens e vice-versa. Aqui, as imagens fixas e em movimento de Sandra Rocha sugerem o sangramento de uma náiade, ferida pelo hipnótico reflexo magenta no mar, que se derrama numa poça de água ao pôr do sol. Ali, presenças são sugeridas pelos movimentos suspeitos e lentos no fundo de uma falésia ou ainda pelo iminente surgimento de um perigo no plano fixo e de um mar de óleo a ferver.
As criações musicais de François Joncour ancoram o todo numa realidade percetível. O poli-instrumentista-feiticeiro faz malabarismos com as influências, os sons captados em profundidade por cientistas, os cantos de cagarras de falésias e os de periquitos tropicais, para dar voz às criaturas. Bebeu da música litúrgica, na bossa nova, no Kan ha diskan e na pop inglesa para oferecer composições inspiradas e graciosas, sombrias, tenebrosas à Émilie, Camilla e Pauline.
As composições deste projeto colocam-nos num estado de encantamento, mas também na espera de uma ameaça misteriosa. As sirenes são, alternadamente, lançadoras de alertas bem-intencionados ou de ameaças de terror e morte. As aparências escorregadias e as vozes encantadoras ou estridentes perdem-nos, adormecem-nos acordam-nos. Figuras evidentes desta época de catástrofes anunciadas, elas gritam as ameaças no vazio e de seguida vingam-se por não serem ouvidas. Num tempo em que outras sirenes uivam sobre Kiev, Kharkiv, Mariupol, as vozes de uma juventude sob alta pressão nos canta sem parar que o maravilhoso está envenenado.
Então, vais ceder às sirenes?
Emmanuelle Hascoët