Configurações para conversa e solilóquio
Tomando como referência as pinturas do séc. XVIII inglês (por exemplo William Hogarth, 1697-1764),as conversation piecesretratavam cenas familiares ou retratos de grupo, com uma pose informal, em lugares mundanos ou em jardins, tendo como pano de fundo a paisagem sob uma representação romântica. As conversation piecesforam um género da pintura que na sua época gerou grande adesão e interesse junto de uma burguesia ascendente, em contraponto com os majestosos retratos régios ou imperiais que a aristocracia nobilitada tinha até aí instituído.
Enquanto tema e género da pintura, as conversation piecesconstituem-se como repositório da história da representação com uma forte expressão social. Contudo, a ideia subjacente à representação de duas ou mais figuras que expressam um relacionamento persistiu na prática artística, que se expandiu para uma acção colaborativa, e por vezes contextual, sem perder o seu vínculo à história da arte, como anteriormente referi. É neste aspecto que a exposição de Maria José Cavaco nos interpela e desafia, perante o duplo e o múltiplo que constituem estas peças para conversa e diálogo, mas que se abstraem e ausentam da representação humana enquanto figuração prospectiva de uma cena relacional. A exposição intitula-se Conversation Piece: 4 Settings, e é neste ponto, que o título elege, que reencontramos o contexto conceptual do seu trabalho, onde a palavra reabilita o espectador num movimento sobre as paisagens, desenhadas e pintadas em materiais muito diversos sob a forma de dípticos ou polípticos (estes como múltiplos em painel ou séries lineares), jogando desta forma com o percurso do observador e o espaço da exposição, como na obra intitulada Rota de todos os dias (2010).
Mas uma outra obra reforça a dualidade da presença, sob o título “Não sei onde estou (por favor fica comigo)” (2011), que nos pode conduzir a essa ideia de uma dupla representação, mas apenas como projecção do sujeito que observa, como uma imagem que associamos às pinturas, na sua espessura de camadas, fluxos lumínicos e cromáticos que a subtil linha espelhada traduz como uma aparência fugaz no díptico que se opõe e que nos encerra num diálogo anacrónico. Todos os elementos desta obra, que deve ser entendida como uma construção espacializada, reinscrevem em nós uma permeabilidade à presença do outro através da palavra enquanto dispositivo e agente contido no título.
As obras intituladas “Conversation Piece”, I e II (mais recentes: 2017 e 2018) são constituídas por folhas que suportam diferentes técnicas e materiais, como accrochagesque por um lado densificam a imagem da paisagem (são jardins enquanto memória histórica e simultaneamente auto-referencial), mas por outro obnubilam essa mesma referência, transformando-se em objectos de contemplação para o espectador. Deste modo, Maria José Cavaco abre um campo de possíveis diálogos entre quem vê e aquilo que é visto, esses objectos que constroem um itinerário discursivo sobre o trânsito visual, e assim físico, daqueles que habitam o espaço da exposição e que estão sujeitos a uma condição material, háptica e plena de texturas que os materiais utilizados, incluindo a palavra, desconstroem no sentido de reactualizar o tema e o género numa operativa imersão no contexto e memória temporal que estas obras contêm. Regressando, por último, ao título da exposição, Conversation Piece: 4 Settings, confrontamo-nos com o duplo e com a ambiguidade do algarismo que faz a conjunção da frase e que pode ser lido numa imediata conversão linguística de “four”, o quatro, ou numa interpretação contingente que nos interpela entre as palavras “for”, que, na língua inglesa, reside na matriz histórica do género e a sua tradução, “para”. Para quem? Para nós, enquanto presenças no diálogo entre configurações (Settings) diversas. Entre a ideia do duplo e a amplitude de outros que nos aguardam.
João Silvério
Curador
Revisão do texto por José Gabriel Flores