Inglês técnico para defuntos
Enquanto não se mandar traduzir tudo para inglês técnico, subsistirão sempre dúvidas sobre o que fará um bacalhau no meio de uma pintura. Contemplar um bacalhau só pelo prazer libidinoso de contemplá-lo, por exemplo, embora continue a ser um direito inalienável de qualquer cidadão, deixou de ser suficiente. A contemplação sem mais nada, esse ditoso estado de quietude absorta — inigualável para o desenvolvimento da inteligência —, e talvez a única actividade humana que comprovadamente não começa logo a dar cabo de tudo à sua volta, tem o problema grave de poder conduzir à apatia. No lugar do bacalhau deve estar por isso um grande K bem facetado, entendível por todos e mobilizador. K, no linguajar cristalino do inglês técnico, quer dizer mil; e, de repente, o mundo torna-se num lugar muito mais aprazível.
A concisão do inglês técnico é a inveja e o enlevo das concisões e a alegria dos anunciantes com um pendor messiânico. No entanto, a salvação do mundo não parece estar na concisão do inglês técnico — sendo difícil dizer com rigor onde possa estar a salvação do mundo. Não será mais avisado, e de maior utilidade, ensinar inglês técnico a um defunto — mesmo que a primeira reacção deste seja desmotivadora —, do que andar a correr a verter tudo para inglês técnico, apenas porque não se sabe exactamente o que quer dizer um bacalhau no meio de uma pintura? O que há de exaltante em reconhecer na letra K a palavra mil? Já na estupefacção sempre renovada de experienciar in situ a impossibilidade de ensinar inglês técnico a um defunto pode estar escondida alguma coisa preciosa a que valha a pena prestar atenção e, por consequência, dissecar. Talvez um bacalhau.
José Loureiro
2022